
Boas Zé...
Quando foste, dia 4 de Fevereiro de 1996, abanaste o mundo de muita gente, inclusive o meu.
Foi uma das machadadas nas crenças religiosas, e um culminar das interrogações ácidas que me inundavam pela leitura da Bíblia e análise dos factos e probabilidades. Acordei da sensação de imortalidade e caminhada rumo a uma pesagem de actos, e caí na racionalidade extrema de um ser pensante, mas igual a todos os outros nesta Terra. Doeu. Assistir à morte de avós marca, mas, ser atingido pela noticia de uma morte inesperada de uma pessoa jovem e diariamente presente na minha vida é mais impactante. Dizem que a Natureza não dá saltos evolutivos, mas a fila para a reciclagem não é linear, dá saltos nos números e saltos bem visíveis.
Sempre fui ingénuo e lírico, e a esses a vida dá socos no estômago com fartura.
Não pude evitar deixar de pensar que fui um afortunado, porque apesar da relatividade da situação, a ti foi-te dado apenas 20 anos para viver. Se 80 anos é pouco, o que dizer de 1/4 disso? Não é fácil nem saudável enumerar todas as experiências que te faltou concretizar e saborear nesta vida. Tinhas solidez e apoio familiar, inteligência e destreza suficiente para seres um homem realizado e bem sucedido. Mas o raio caiu, e caiu bem ao meu lado. Deu para ouvir o trovão a estourar-me os tímpanos, com um milésimo de segundo de diferença com o clarão.
A seguir sou eu. Não interessa quando, mas sou a seguir. O problema é mesmo esse...somos a seguir. Nem interessa bem qual é o número, pois a chamada é aleatória, mas somos a seguir, e a Natureza não se esquece de nós. "Sooner or later God's gonna cut you down" cantava Jonnhy Cash. Se fosse Deus eu nem me importava muito. Preocupo-me e tento tratar o meu semelhante como acho que é suposto ser tratdo por ele, daí que seria considerado um aluno regular na escola de Deus. Mas ao que me parece Deus apareceu com a primeira centelha de inteligência, imediatamente a seguir ao medo de morrer. O homem tomou consciência de que se o "Zé" dele morreu, ele corria o mesmo risco de partilha de destino. Mas se ele lhe era assim tão importante, obviamente que haveria algo depois, pelo que o deveria sepultar, em posição de "feto adormecido" com as suas ferramentas, jóias e armas.
Mas, e quem perdeiu a esperança de ser "filho protegido de Deus"? Quem olha para o braço e vê "tatuado o número seguinte"? Como se vive a prazo? Como se saboreia as férias que acabam em dia incerto, mas que sabemos que acaba? Como se corre sendo que somos "dead man walking"? Há o suposto antídoto "Carpe Diem". Dificil de engolir, cada vez mais quanto mais os anos passam. Provavelmente é por isso que a Natureza nos faz definhar, nos inutiliza aos poucos. Para que estejamos já tão diferentes do que fomos um dia, e tão debilitados que aceitamos a inevitabilidade de termos de morrer. Sentimos a falência iminente.
E a questão principal? Como se vive? Provavelmente olhando 10 metros em frente, em vez de alguns kilómetros, para que não se possa ver o precipício. Ou então olhar para o lado e perceber que a galé está cheia de "condenados" nas mesmas condições e alguns ainda são mais chicoteados do que nós e remam apenas com um braço dado que o outro já lhes foi tirado. Mas eu não sou o Ben-Hur. Só consigo ver o que não tenho, bem como a maioria desta geração ocidental. E por isso somos tão infelizes. Temos telemóvel, computador portátil, 200 canais, podemos comer alimentos de quase todo o mundo, mas há dias em que nos deitamos com menos felicidade (caso houvesse uma forma de o medir), do que os nossos avós após um dia extenuante de trabalho no campo. Suados, com calos doridos, mas com esperanças, sensação de concretização e dever cumprido. Saber demais não traz felicidade, talvez seja essa a mensagem da parábola de Adão e a sua Maçã. Ter demais também não a traz, mas sim não o ter e consegui-lo hoje, e conseguir amanhã, e querer ainda mais para a semana. Ter conseguido ontem, vai-se dissipando no tempo. A que soube o dia de ontem? A pouco, a quase nada, um pouco mais que o anteontem e o dia especial da semana passada. O Hoje é mais intenso. O Agora é especial. E o Hoje pode ser concretizador ou um insatisfeito momento. Tal como na cantiga de Sérgio Godinho, sabendo-nos a pouco. O Amanhã traz-nos o incerto, a esperança ou o negro futuro. O condenado espera apenas o dia da execução, cada dia que passa é menos um dia, a meta aproxima-se, já vê o manto escuro e o brilho da foice. Assim somos nós, se pensarmos bem nisso. Mas não convém. Antecipar a dôr de barriga enquanto se come retira o sabor da comida.
A despreocupação da criança dentro de nós é bem mais saudável que deixar sair o "velho", o ser consciente da sua perecibilidade e da relatividade de tudo que aqui se passa.Somos tal como uma pequena chama de um fogo, nasce, extende-se e extingue-se num ápice e ninguém a percebe a menos que tenha tocado alguém. Podemos tocar, aquecer ou queimar amigos e família, conhecidos e quem passa pelas nossas vidas. Para todos os restantes somos basicamente invisiveis. Quando era miúdo queria ser famoso, para assim ser menos mortal, ficar algo meu neste mundo, ser admirado pelas gerações futuras. Também não adianta de muito. Mas devo reconhecer que a semi-imortalidade de actores ou beneméritos famosos me continua a atrair, até porque continuo a idolatrar alguns deles. A morte mete-nos medo e fascina-nos. Criou todo um universo de crenças, de figuras mitológicas, de explicações de fuga, de interações. Mas a morte é a morte, seca e directa. Só se pode queixar da morte quem alguma vez foi vivo, e nem todos serão vivos algum dia.
Não tenho a solução para o que o titulo deste texto antevia... Mas a vela só tem a bonita chama se queimar a cera, e a cera vai acabar, e entretanto tudo é quente e luminoso. Enquanto escrevi, estes 2 dias, a dor diminuiu. Encontrar a forma de dominuir a dor talvez seja o caminho...